29 dezembro 2012

Leituras de fim de ano

Quadro da cr

"... e levantar-se de madrugada, logo depois de o galo pedrês cantar, ir à arramada fazer as necessidades, voltar para casa e colocar um pau de azinho e uns gravetos para atear o fogo; depois lavar a cara na bacia de esmalte azul, pentear o cabelo e fazer o monho, preso com uma peneta; despir a camisa de dormir, de flanela, e vestir o vestido preto, comprido e as meias pretas de lã grossa e calçar os sapatos de couro cardados; ir ver a cafeteira que está ao lume, entornando o café, pois já cheira por toda a casa; abrir a arca de castanho e retirar o tarro de esmalte cinzento com flores vermelhas, onde guarda o conduto; cortar o toucinho e a linguiça e o queijinho de cabra, ir ao tabuleiro do pão e levantar o pano de linho branco, tirar um pão, fazer sobre ele o sinal da cruz com o dedo e benzer-se, sentar-se numa cadeira e beber o café, junto ao fogo; e não se esquecer de fazer os farelos para o porco que soa a grunhir na pocilga e, de caminho, deitar uma mão cheia de milho às galinhas, e ver se têm água no bebedouro, que é um caco de barro ou uma rocha cavada no xisto..."

E continuo a ler em "Breviário das Almas" de Joaquim Mestre. Mão amiga fez-me chegar dois livros deste escritor alentejano que não conhecia. Assim de repente recuei umas décadas no tempo, quando criança passava férias no Alentejo profundo, na Serra de Serpa no monte de uma tia. Ali tudo era primitivamente simples. Não havia electricidade, nem água corrente. Albardava-se a burra, colocavam-se as enfusas e descia-se ao vale para ir ao poço e à horta. Pelo caminho muitas brincadeiras com os primos, que nos pregavam muitas partidas porque nós éramos meninas de cidade e tudo nos surpreendia. De vez em quando deixavam-nos dormir ao relento, ao som dos chocalhos das ovelhas, a olhar as estrelas e a ouvir histórias misteriosas, que nos faziam bater o coração e esbugalhar os olhos. Memórias que ficaram de momentos verdadeiramente mágicos. Saudades ... boas...

7 comentários:

Mona Lisa disse...

Fizeste-me vasculhar o meu baú de memórias...

Não sendo no Alentejo relembrei momentos idênticos vividos em casa dos meus avós paternos.

Beijinhos.

Kok disse...

De visita para te desejar um óptimo 2013 (malgré tout), que consigas concretizar os teus desejos e os teus mais importantes objectivos.

Beijos com sorrisos!

cr disse...

Olha olha os meus alentejanitos.
A menina e o Joaquim Mestre lá se perderam pelo labirinto das recordações...
É a nostalgia a apoderar-se das almas...

Tenha lá um bom ano 2013 se faz favor!

Manuel Nunes disse...

Depois da nossa conversa de ontem, aqui fica esta passagem de um romance de Mário de Carvalho:

"Está Emanuel à porta da biblioteca que, na cidade, é onde todos os caminhos vão dar, e examina com muita atenção as colunas à entrada, feitas de livros de pedra empilhados, em harmónico desequilíbrio. (…) Atrasadíssima chegou uma rapariga, (…) Um homem ainda novo, de cabelo à escovinha e barba de três dias, ia a entrar, com dois pacotes de papel pardo, que pareciam pesados.
– Doutor Joaquim Mestre! – gritou ela com uma risadinha. – Olhe que me prometeu uma entrevista…
O homem voltou-se e sorriu, sem parar de subir os degraus:
– Amanhã logo se vê. Amanhã.
E desapareceu, portas vidradas adentro.
– Este há quase um ano que me vem dizendo “amanhã”… Ah, esta vida de jornalista… – suspirou a rapariga.

(---- MÁRIO DE CARVALHO, Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina, 2ª edição, Caminho, 2003, p. 208.)

Custódia C. disse...

cr, adoro os teus alentejanitos :)

Custódia C. disse...

Manel

A personagem real dentro do romance, exactamente como disseste... é preciso arte para fazer tal enquadramento. E o Mário de Carvalho tem-na!
Continuo a ler o JM e a gostar. Já estou na "Cega da casa do Boiro".

Suzi disse...


Viajei um pouquinho enquanto li o trecho transcrito do livro; mas viajei tanto quando li o pedacinho das tuas memórias, CCC!!, porque me falou de coisas também a mim tão familiares: primos, dormir ao relento, poço, horta, estrelas, histórias misteriosas, férias no interior, meninas da cidade...
Devias tu escrever também um livro!