Quadro da cr
"... e levantar-se de madrugada, logo depois de o galo pedrês cantar, ir à arramada fazer as necessidades, voltar para casa e colocar um pau de azinho e uns gravetos para atear o fogo; depois lavar a cara na bacia de esmalte azul, pentear o cabelo e fazer o monho, preso com uma peneta; despir a camisa de dormir, de flanela, e vestir o vestido preto, comprido e as meias pretas de lã grossa e calçar os sapatos de couro cardados; ir ver a cafeteira que está ao lume, entornando o café, pois já cheira por toda a casa; abrir a arca de castanho e retirar o tarro de esmalte cinzento com flores vermelhas, onde guarda o conduto; cortar o toucinho e a linguiça e o queijinho de cabra, ir ao tabuleiro do pão e levantar o pano de linho branco, tirar um pão, fazer sobre ele o sinal da cruz com o dedo e benzer-se, sentar-se numa cadeira e beber o café, junto ao fogo; e não se esquecer de fazer os farelos para o porco que soa a grunhir na pocilga e, de caminho, deitar uma mão cheia de milho às galinhas, e ver se têm água no bebedouro, que é um caco de barro ou uma rocha cavada no xisto..."
E continuo a ler em "Breviário das Almas" de Joaquim Mestre. Mão amiga fez-me chegar dois livros deste escritor alentejano que não conhecia. Assim de repente recuei umas décadas no tempo, quando criança passava férias no Alentejo profundo, na Serra de Serpa no monte de uma tia. Ali tudo era primitivamente simples. Não havia electricidade, nem água corrente. Albardava-se a burra, colocavam-se as enfusas e descia-se ao vale para ir ao poço e à horta. Pelo caminho muitas brincadeiras com os primos, que nos pregavam muitas partidas porque nós éramos meninas de cidade e tudo nos surpreendia. De vez em quando deixavam-nos dormir ao relento, ao som dos chocalhos das ovelhas, a olhar as estrelas e a ouvir histórias misteriosas, que nos faziam bater o coração e esbugalhar os olhos. Memórias que ficaram de momentos verdadeiramente mágicos. Saudades ... boas...