29 janeiro 2009

Ruth e Rachel

Em Novembro do ano passado, a filha de uma amiga, no âmbito de um trabalho que tinha que fazer para o seu curso, mostrou-me uma fotografia antiga que tinha encontrado na Feira da Ladra e pediu-me que lhe descrevesse a história existente por trás da mesma. A foto mostrava uma senhora de olhar triste e doce que envolvia num abraço carinhoso uma menina que parecia ter 4/5 anos. Pereceu-me ser uma foto dos anos 40. Foi a seguinte a história que me sugeriu:

Imagem daqui

É véspera de Natal. Lá fora, o vento sopra irritado, agitando as águas do oceano. O barulho das ondas gigantescas a desfazerem-se contra os rochedos, atinge à distância a vila isolada no cimo da encosta. É um som agradável, quase que uma música de fundo a enquadrar a comemoração festiva que se adivinha.
Ana espreita pela janela e vê as nuvens escuras que se aproximam rápidas, vindas do lado do mar. Vai ser um Natal frio e chuvoso como ela gosta. Serão à lareira, com muita brincadeira, histórias antigas e os maravilhosos bolinhos da avó. Tem dezasseis anos e desde que se lembra de ser gente, os seus Natais foram todos passados ali, em casa da avó Rachel. Memórias doces de uma vida ainda curta, com quem o destino tem sido até agora bondoso.
Enquanto na cozinha a mãe, a avó, a tia e a Marta, a benjamim da família, que, embora os seus 10 anos, adora tachos e panelas, estão ocupadas com os preparativos para a ceia de Natal, no jardim e apesar do frio, o pai, o tio João e David o irmão mais novo, estão entretidos a consertar a cancela de madeira, que já viu melhores dias. A avó tinha prometido uma sobremesa especial se lhe arranjassem a dita (já estava farta de a ouvir bater…. efeitos do vento constante na região).
Ana, que tem um temperamento calmo por natureza, assusta-se quando as primas gémeas, dois anos mais novas do que ela, irrompem pela sala, numa agitação de quem traz novidades para contar. Trazem com elas uma antiga caixa de madeira trabalhada, cuja tampa tem gravado em estanho o nome Ruth.
- O que é isso meninas, o que andaram a fazer?
Sofia, a mais agitada das duas, defendeu-se de imediato:
- Andámos no sótão, mas foi a avó que disse que nós podíamos – e depois ansiosa por mostrar o “tesouro”- tens que ver isto, Ana! Foi a Sara que encontrou, estava lá em cima naquela estante do canto. Tem fotografias antigas lindíssimas. Devem ser de Marselha. A avó nasceu lá, lembram-se?
Sentam-se as três no chão em frente ao calor da lareira e rapidamente a reunião se transforma numa discussão animada, sobre aquele mundo a preto e branco.
- Olha esta, diz Sara, deve ser bem velhinha, olha as roupas … e o ar … tão estático e sério. Será o nosso bisavô?
- E este bebé? Está atafulhado de laços e fitas, nem dá para perceber se é menino ou menina! Exclama Sofia. Não pode ser a avó! Será?
- Olha aqui está uma fotografia da cidade…. Está tão esbatida!
- Ah esta é lindíssima, disse Ana, exibindo uma fotografia que mostrava uma menina a envolver num abraço carinhoso, uma senhora de ar distinto e doce.
- Essas são fotografias da minha família, diz uma voz vinda da porta e essa sou eu e a minha mãe.
- Ah avó venha ver connosco. Quer dizer que esta é a bisavó Teresa? – perguntou Ana.
- Não minha querida, essa é a minha mãe verdadeira, a bisavó Ruth.
- Ah a bisavó Ruth que morreu durante a guerra … e quando é que esta fotografia foi tirada? Conte-nos lá Vó, ainda se lembra?
Rachel dirigiu-se para junto delas e olhou, momentaneamente aturdida, para todas aquelas fotografias. As netas ficaram subitamente em silêncio, enquanto a avó mergulhava rapidamente em recordações perdidas no tempo e na memória. Algum tempo depois sorriu-lhes e disse:
- Há muito tempo que não mexia nesta caixa. Era da minha mãe e foi a única recordação que me ficou dos meus anos franceses. Vocês sabem que eu vim para Portugal com 5 anos, viver com uma família que me criou e acabou por me adoptar, quando soube da morte dos meus pais.
- Nós só sabemos assim por alto, conte-nos melhor avó, pediu Ana.
- Eu não tenho muitas lembranças, o que me ficou na memória, foi o que os meus pais portugueses me contaram. Eu nasci em Marselha em 1939. O meu pai era filho único e órfão de pais. A minha mãe que era francesa de origem judia, tinha como família apenas um irmão mais velho, os pais tinham morrido eram eles muito jovens. Os meus pais conheceram-se numa recepção oferecida pelo Consulado de Portugal. A minha mãe era a melhor amiga de um casal que trabalhava no Consulado e o meu pai tinha lá ido em representação da Câmara local. Acho que foi paixão imediata, porque casaram um ano depois de se conhecerem. Sei que se adoravam e que ficaram muito felizes com o meu nascimento. Apesar de origem judia a minha mãe era católica, pelo que fui baptizada ainda bebé e os amigos da minha mãe (a bisavó Teresa e o bisavô Henrique) foram os meus padrinhos. Infelizmente com o desenrolar da Guerra as coisas complicaram-se, com a perseguição aos judeus. Em 1943 e dadas as nossas origens, o meu tio, a minha mãe e eu, fazíamos parte de uma lista de nomes para deportação. Os meus pais ficaram desesperados. Na mesma ocasião, os amigos da minha mãe, estavam de regresso a Portugal e ofereceram-se para me trazer com eles, até que as coisas acalmassem ou a Guerra acabasse. Com a ajuda de documentos, falsos viajei como filha deles e vim para Lisboa. Essa caixa da minha mãe foi a única coisa que veio da minha família, bem escondida no meio das roupas da bisavó Teresa.
Na sala, entretanto invadida pela penumbra, a voz da avó, seguida pelos olhares vivos e curiosos de Sara e Sofia, era de vez em quando interrompida pelos comentários de Ana:
- A bisavó Teresa e o marido foram formidáveis, não foram Vó?
- Foram sim minha querida! Não só salvaram a minha a vida, como depois de saber da morte dos meus pais, adoptaram-me e deram-me uma vida feliz.
- E quando a avó veio embora, o que aconteceu a seguir? – perguntou Sofia
- A minha mãe e o meu tio foram enviados, primeiro para o Complexo de Drancy perto de Paris e posteriormente para Auschwitz onde morreram. O meu pai desesperado com a prisão da minha mãe, ingressou num grupo da resistência francesa e morreu um dia numa emboscada. Só soubemos destes acontecimentos, um ano depois da guerra ter terminado. Foi então que os meus pais portugueses me adoptaram – concluiu sorrindo a avó Rachel.
- Então e esta fotografia sua com a sua mãe, a Vó lembra-se quando foi tirada? – perguntou Ana.
- Lembrar propriamente creio que não, mas quando olho para a fotografia tenho uma sensação de conforto e de tranquilidade e uma ideia vaga de festa. A bisavó Teresa contava que, quando fiz quatro anos e com a Guerra cada vez mais feia, a minha mãe decidiu fazer-me uma festa de aniversário, que fosse alegre e ficasse na memória de todos. Fez-me um vestido muito bonito e quando me viu com ele gostou tanto, que me levou ao fotógrafo para perpetuar o momento. Tirámos duas fotografias, essa e uma outra só comigo, que deve ter ficado com ela porque não veio nessa caixa.
- Estão lindas as duas, Vó! – comentou Ana suavemente – é uma fotografia que transmite um enorme carinho, mas ao mesmo tempo há uma tristeza nos olhos da sua mãe, como se ela adivinhasse o que estava para vir.
- Nas guerras cometem-se sempre muitos crimes e a perseguição aos judeus é uma vergonha que ninguém deveria esquecer. Infelizmente a memória dos homens é curta - disse a avó suavemente – mas agora chega, é Natal, estamos juntos e isso é o mais importante. Quem quer provar os meus bolinhos de maçã e canela, acabadinhos de sair do forno?
As gémeas saltaram de imediato e correram na direcção da cozinha. A avó seguiu-as e quando chegou à porta da sala, olhou para trás e percebeu que Ana continuava sentada no chão a olhar a fotografia que tanto a sensibilizara.
- Ana, dou-ta, queres ficar com ela? – perguntou, sorrindo.
O rosto de Ana iluminou-se:
- Oh avó, obrigado! Não estava com coragem de pedir! Vou pintar-vos, às duas, sabes? Vou fazer um quadro contigo e a tua mãe – respondeu alegremente.
A avó saiu atrás das gémeas e Ana ficou no calor da sala, arrumando as fotografias e a pensar já em telas, cores e pincéis.
É véspera de Natal. Lá fora o vento sopra mais calmo agitando, mesmo assim, as águas do oceano.

Custódia
Novembro 2008

5 comentários:

Luís F. disse...

Que bela prosa. Viajei para esse inverno frio e com histórias passadas .
Gostei muito!

Suzi disse...

vou voltar amanhã (quer dizer, hoje) para ler com a atenção que merece. é que acabei de trabalhar agora e o sono me pegou já há muito! passei para deixar um abraço e desejar um boa dia! já é dia de hip! hip! hurra!!
;o)

1entre1000's disse...

Deliciosa!

Helena de Tróia disse...

Ai que linda história!! magnífico mesmo! adorei! está muito bem escrito...parabéns!!

Su disse...

Lindooooo!!!! Levou-me para adolescência e fez-me lembrar os livros que devorava até ao fim sem conseguir parar.
A minha querida Custódia, sempre a surpreender!
Beijinho
Su